quarta-feira, 19 de novembro de 2003

CLARISSA PINKOLA ESTÉS
Em Junho / Julho - nas Férias de Inverno
Eu não estava fazendo muita coisa, férias adoráveis (saudades dela!)

Acho que fui abduzida pelos Fw's, impelida pela falta de Re's na minha caixa de e-mail.

Senti e sinto falta da pessoalidade na minha caixa de e-mail.


Repassei um trecho do livro da Clarissa Pinkola Estés aos amigos
Pensando que 1) se é para enviar mensagens- em "Fw" - clássicas como as "Prá pensar", que seja algo bastante individual e, 2) que seja algo pessoal, para dividir com os amigos.


Daí surgiu o Blog
Para não lotar caixas de e-mail que não buscam pessoalidade (ou não tem tempo para se envolver numa leitura que clama pôr) e, principalmente, para dividir com os outros.


Então, apresento-vos, Clarissa Pinkola Estés!

--- "mari.mtb" escreveu:
> Caros Amigos (as),
> Passei a tarde toda resolvendo bolos de final de
> semestre...
>
> Mas quero dedicar algum tempo digitando um conto da
> querida Clarissa Pinkola Estés:
>
>
>
--------------------------------------------------------------------------------
>
>
> A Mulher-esqueleto
>
> Ela havia feito alguma coisa que seu pai não
> aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que
> havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado
> até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes
> devoraram sua carne e arrancaram seus olhos.
> Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou
> muitas vezes com as correntes.
>
> Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em
> outros tempos muitos costumavam vir a essa baía
> pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua
> colônia e não sabia que os pescadores da região não
> trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era
> mal-assombrada.
>
> O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e
> se prendeu - logo no quê! - nos ossos das costelas
> da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: "Oba, agora
> peguei um grande de verdade! Agora peguei mesmo!" Na
> sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse
> peixe enorme iria alimentar, quanto tempo carne sua
> carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da
> obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse
> enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou
> com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e
> sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava
> para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais
> ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse,
> ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a
> superfície, puxada pelos ossos das próprias
> costelas.
>
> O pescador havia se voltado para recolher a rede e,
> por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das
> ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nos
> órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos
> dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede
> nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que
> estava, já havia chegado à superfície e caía
> suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes
> incisivos.
>
> - Arg! - gritou o homem, e seu coração afundou até
> os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no
> fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho
> forte. - Arg! - berrou ele, soltando-a da proa com o
> remo e começando a remar loucamente na direção da
> terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua
> linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela
> parecia estar de pé, a persegui-lo o tempo todo até
> a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o
> caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração
> formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços
> se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo
> para as profundezas.
>
> - Aaagggggghhhh! - uivava ele, quando o caiaque
> encalhou na praia. De um salto ele estava fora da
> embarcação e saía correndo agarrado à vara de
> pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto,
> ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos
> bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o
> acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela
> não se distanciou. Ele passou por cima da carne que
> havia deixado secar, rachando-a em pedaços com as
> passadas dos seus mukluks.
>
> O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade
> até pescou um pedaço de peixe congelado enquanto era
> arrastada. E logo começou a comer, porque há muito,
> muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem
> chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de
> quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro.
> Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no
> escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor
> enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é,
> seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven,
> é, e também à toda-generosa Sedna, em segurança,
> afinal.
>
> Imaginem quando ele ascendeu sua lamparina de óleo
> de baleia, ali estava ela - aquilo - jogada num
> monte no chão de neve, com um calcanhar sobre o
> ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima
> do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que
> realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado
> suas feições, talvez fosse o fato de ele ser um
> homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de
> delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos
> encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o
> filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
>
> - Os, na, na, na. - Ele primeiro soltou os dedos dos
> pés, depois os tornozelos. - Oh, na, na, na. -
> Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de
> peles para aquecê-la, já que os ossos da
> Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser
> humano.
>
> Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e
> usou um pouco do próprio cabelo para acender um
> foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando
> enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua
> vara de pescar e enrolava novamente sua linha de
> seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava
> palavra - não tinha coragem - para que o caçador não
> a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo das
> pedras, quebrando totalmente seus ossos.
>
> O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles
> de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando
> seres humanos dormem, acontece de uma lágrima
> escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que
> tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um
> sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que
> aconteceu com o homem.
>
> A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do
> fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela
> se aproximou do homem que dormia, rangendo e
> retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela
> única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu
> e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.
>
> Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a
> mão para dentro do homem que dormia e retirou seu
> coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a
> batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!...
> Bom, Bomm!
>
> Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em
> voz alta.
>
> - Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! - E
> quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de
> carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e
> mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão
> entre as pernas e seios compridos o suficiente para
> se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que
> as mulheres precisam.
>
> Quando estava pronta, ela também cantou para despir
> o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a
> pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande
> tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que
> acordaram, abraçados um ao outro, enredados da noite
> juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e
> duradouro.
>
> As pessoas não conseguem se lembrar de como
> aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o
> pescador foram embora e sempre foram bem alimentados
> pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo
> d'água. As pessoas garantem que é verdade e que é só
> isso que sabem.
>
>
>
--------------------------------------------------------------------------------
>
>
>
> Esta história pertence ao capítulo 5:
> A caçada: Quando o coração é um caçador solitário.
> Mulheres que correm com os Lobos (Pinkola Estés,
> Clarissa, 1992)


ESTA ESTÓRIA CONTINUA...

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